O Apólogo das Lunetas
Neste apólogo, saiba porque manter a humildade nos faz enxergar preciosidades
Por Mara Vanessa Torres e Rafaela Torres
Em algum lugar de um passado que já foi presente, duas lunetas dividiam o mesmo espaço na extensa biblioteca do Sr. Kai. Ambas haviam sido compradas da família de um mercador da Era Meiji e foram objetos de imperadores e nobres.
Elas possuíam lentes límpidas, transparentes, de um alcance cristalino. Satoko, a luneta vermelha, era revestida de pérolas de rubi, corpo e suporte de ouro ancestral, iniciais grafadas com pedacinhos de cristais. Meisho, a luneta esverdeada, era de madeira, prata e suporte de ferro.
Um dia, exausta de tanto tédio, a refinada Satoko iniciou um longo monólogo. Ela se punha a tagarelar, ávida para demonstrar todo o seu esplendor para a outra.
— Fui construída entre o império de reis, servi aos desígnios dos senhores da guerra, fui esculpida para deliciar imperatrizes e donzelas. Meu corpo tem rubi encravado, beijado suavemente pelo ouro dos artistas ancestrais.
Meisho apenas escutava em silêncio. Não satisfeita, a requintada Satoko, do alto de sua belíssima cor de sangue, inflamou seus rubis, reverberando em todo o lugar. Nada aconteceu, pois a companheira silenciosa continuava impassível.
A luneta luxuosa não entendia por qual razão aquele pedaço de madeira primitivo continuava apresentando uma postura altiva quando não passava apenas de sucata aproveitada por iniciantes para dar início à febre pelos conhecimentos e segredos astronômicos.
Intrigados, os rubis rodopiavam de um lado para o outro, cantarolavam, esticavam seu esplendor. O silêncio era o mesmo. Por fim, depois de inúmeras tentativas, Satoko disse:
— Por que você continua indiferente? Será que não percebe que sempre serei o foco dos observadores e usuários desta biblioteca?
Nesse momento, Meisho deu alguns passos em direção à companheira, sussurrando:
— Aproxime-se, minha amiga. Dê uma olhada em mim.
A outra assim o fez. E qual não foi sua surpresa ao colocar as lentes sobre a prata simplória da silenciosa parceira!
Satoko não viu apenas estrelas, planetas e cauda de cometas; ela viu sonhos. Modestas tonalidades de verde, cinza e opaco se misturavam através de desejos, segredos e esperanças. Elementos que, indubitavelmente, formam à Via Láctea.
Mara Vanessa Torres é escritora, jornalista, revisora e crítica cultural. Tem profunda admiração e crescente interesse pelo universo artístico e cultural nipônico. @abyssal_waters
Rafaela Torres é escritora, psicóloga, ilustradora e gamer. Apaixonada pela cultura asiática. @rosenightshade