Fábulas da Sábia Yoki (Parte 2: A Pomba)
O que fazer quando somos preteridos por quem amamos? Por meio de uma fábula envolvente, a Veneranda Yoki planta sementes de consciência, amor e compaixão nos habitantes de seu pequeno vilarejo.
Por Mara Vanessa Torres & Rafaela Torres
“Embora o corpo se mova, a alma, às vezes, fica para trás.”
Murasaki Shikibu
O aroma suave das flores de crisântemo perfumava o ar do pacato vilarejo. Naquela manhã de sol cálido, passarinhos sapecas cantarolavam com alegria, pulando de galho em galho como se estivessem dançando.
Passeando pela floresta, a veneranda Yoki observava o florescimento daquelas belas flores, tão nobres, profundas e límpidas como um coração em que se pode confiar.
O escorregar das horas seguia tranquilo e harmonioso, até que passos descompassados atraíram a atenção da sábia. Jiro, um jovem garoto da aldeia, andava distraído, sem notar coisa alguma.
Essa falta de atenção fazia com que seus pés produzissem um ruído alto, ecoando como apito de locomotiva na quietude da floresta. Ao perceber a presença da sábia, Jiro fez uma longa reverência e, pedindo desculpas, encaminhou-se para outra rota.
— Meu jovem – falou a senhora Yoki –, pode me fazer um pouco de companhia?
— Sim, sábia – respondeu Jiro.
A veneranda percebeu que o garoto se esforçava para esboçar um simples sorriso, mas seus olhos expressavam tristeza. Dessa forma, ela perguntou com delicadeza:
— O que tem deixado o garoto Jiro tão triste em uma manhã como essas?
Espantado com a percepção aguçada da anciã, Jiro tentou desconversar, mas sentiu que mentir sobre seus sentimentos seria tarefa inútil. Assim, começou a falar:
— Os meus pais e tios sempre me comparam a Junpei, meu irmão mais velho. Não importa o que eu faça, para eles, estou sempre em segundo lugar.
— E por que isso te incomoda?
— Eu quero apenas viver como realmente sou. Quero ter o amor da minha família, mas, apesar de tudo o que faço, só recebo cobranças e comparações.
Tão melódica quanto o canto dos pássaros, a voz da anciã Yoki começou a ser soprada pela floresta:
Crédito da Imagem: Dove por Sasha
“Há muito tempo, uma pomba de belas penas brancas se apaixonou por um monge. Ela visitava a sua humilde residência todos os dias, encantada com os modos, as palavras, os pensamentos e o coração do monge. Em todas as suas visitas, a pomba trazia consigo um raminho de shissô e depositava na porta da casa.
No entanto, ao amanhecer, o monge se dirigia ao jardim e alimentava todos os outros pássaros que transitavam por ali. Tratava todos igualmente, sem preferência ou deferência. Assim que percebia o raminho no chão, o monge o depositava em uma das rochas próximas ao belo pinheiro de galhos altos, lembrando um antigo castelo medieval, situado logo em frente à casa.
Dia após dia, o monge agia do mesmo modo, enchendo o coração da pobre pomba apaixonada de amargor. Certa vez, desiludida e triste, ela empoleirou-se em um dos galhos do pinheiro. Uma pomba bem mais velha pousou ao seu lado e, notando a melancolia da jovem pombinha, perguntou:
— Por que está tão triste, minha criança?
— Ah, anciã… – suspirou a pomba branca –, amo e não sou correspondida. Faço tudo para que o meu grande amor me note… Todos os dias, trago o melhor ramo de shissô que encontro… No entanto, a pessoa a quem dedico tão puro sentimento mal nota a minha presença.
Depois de alguns minutos de silêncio, a velha pomba indagou:
— Por que a confirmação e validação do amor é tão importante para você?
Incrédula, a pomba branca retrucou:
— E por que não seria essencial? Eu o amo. Faço tudo por ele.
— Se é como diz, por que não continua agindo sem esperar nada em troca? Se o seu sentimento é forte e sincero, ele é seu. É independente. Nasce e cresce, assim como pode morrer, apenas dentro do seu coração. Você não pode obrigar alguém a amá-la. Se o que sente é verdadeiro, viva com intensidade. Faça por amor, pelo gesto em si, e não apenas esperando retribuição ou reciprocidade. Faça por você. Faça pelo mundo.
Ao finalizar o breve discurso, a pomba idosa abriu as asas e levantou voo. Perdida em meditações, a jovem pomba de penas brancas refletiu bastante sobre o conselho que recebeu. Enquanto pensava, decidiu se afastar do monge e daquele ambiente tão familiar.
Três anos depois, o monge encontrou uma pomba branca morta em frente à porta de sua casa. No bico, ela trazia um raminho de shissô. Pegando-a com todo o carinho, ele rasgou um pedaço de seu próprio manto e a enrolou.
Em seguida, cavou um buraco perto do pinheiro e depositou o corpo inerte da pomba. Junto dele, o ramo de shissô e pétalas de flor de lótus, que ele havia guardado para uma ocasião muito especial.
Após dizer uma prece, o monge se despediu do seguinte modo:
— Vá para a Luz Infinita. E, em sua nova caminhada, saiba que o mundo recebeu energias de amor por conta de seu gesto tão bonito, minha querida pombinha! Dedico a você estas singelas palavras, que escrevi em minhas noites de solidão e pensamentos:
“Perfume de shissô
Descongela o inverno
Uma pomba.”
Então, o monge fechou o buraco com terra e se retirou. Na manhã seguinte, ele continuou alimentando os diversos pássaros que pousavam em frente ao seu humilde lar.”
Lágrimas torrenciais escorriam dos olhos de Jiro. Com a manga do quimono, a sábia Yoki as enxugou lentamente. Um pequeno sorriso nasceu no rosto do garoto. O sol continuava brilhando, suave e alegre.
Mara Vanessa Torres é escritora, jornalista, revisora e pesquisadora. Escreve sobre tecnologia, arte, cultura, ciência e cultura asiática. Tem uma mente que acredita em enigmas e no poder da transcendência. Twitter: @maravanessatmf
Rafaela Torres é escritora, psicóloga, ilustradora e gamer. Apaixonada pela cultura asiática e por trilhas sonoras. Instagram: @rosenightshade
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