As asas do pardal-montês
Narrativa fantástica eleva a magia que existe nos pequenos detalhes da vida
Por Mara Vanessa Torres & Rafaela Torres
Quando as nuvens eram cristalinas e o ar puro como a primeira respiração de um recém-nascido, havia um monte chamado Hoshi. Ao anoitecer, as mais belas estrelas apareciam para iluminar tudo o que vivesse no monte e em suas proximidades.
Naquele tempo, várias espécies de animais escolheram o Monte Hoshi para viver. Dentre elas, havia o pardal-montês. Suzume era um desses pássaros. Era agitado, feliz e gostava muito de cantarolar pendurado nas árvores do monte.
Certa vez, voando de um lado para o outro atrás de alimento, Suzume ouviu o choro desolado de uma glicínia. A flor estava caída, murcha, com as pétalas melancolicamente atiradas em direção ao chão. Suzume não se conteve e decidiu saber o que estava acontecendo.
— Olá! Como vai? Se me permite perguntar, qual é o motivo de tanta tristeza?
— Pequeno pássaro, eu não tenho razão para sorrir. Não sinto prazer algum na vida. Há anos que a minha única tarefa é ficar aqui parada, no mesmo lugar, observando o passar do tempo sem poder me mexer. Feliz é você, que pode vagar por todos os lugares. Com as suas asas, pode alcançar o céu, sentir aromas diferentes, ver paisagens espetaculares… Quanto a mim, sou apenas uma parte do todo. Não sou única, sou um pedaço.
Por alguns minutos, Suzume não entendeu o motivo daquela flor estar tão triste.
— Qual é o seu nome? — ele perguntou.
— Meu nome é Fuji.
— O meu é Suzume, sou um pardal-montês. Vivo aqui no Monte Hoshi desde o dia em
que nasci.
— Eu também. Ao menos, você pode ir embora, se assim desejar.
— E por que eu iria embora? O Monte Hoshi é o lugar mais bonito do mundo!
— Você diz isso porque pode ter uma visão ampla de tudo. Se ficasse como eu, parado, sempre no mesmo lugar, sem qualquer perspectiva de mudança, veria que ele não é tão bonito assim.
— Tudo bem — disse Suzume. — Não posso convencê-la do contrário apenas com palavras. Elas podem soar vazias. Permita-me, então, fazer-lhe companhia todas as manhãs durante trinta dias.
Dando de ombros, Fuji, a glicínia, aceitou a proposta do pardal. “Tolo passarinho! Acha que pode me convencer do contrário? Nada vai conseguir acabar com essa tristeza que reina em meu coração. Todo dia é a mesma coisa, incessantemente”, pensou a flor.
Como prometido, Suzume apareceu para visitar Fuji todas as manhãs. Ele cantava as mais belas canções. Também aproveitava para elogiar o vento que passava, agitando flores, folhas, galhos, insetos e muitos outros animais e plantas. O vento era sempre refrescante.
Enquanto contava histórias, Suzume apontava para a luz do sol, que aparecia todas as manhãs e derretia o orvalho. Conversava alegremente com Fuji, apresentando a flor para todos os amigos que por ali passavam. Quando saía rapidamente para beber água, Suzume trazia gotas de água fresca e pura em seu bico, deixando um pouco nas pétalas de Fuji.
Ele também elogiava a grande glicínia do qual a amiga fazia parte, cumprimentando alegremente todas as pétalas e flores que integravam a árvore.
A companhia de Suzume era muito agradável. Com o desenrolar dos dias, Fuji começou a sentir prazer e apreciar o que nascia, crescia e morria ao seu redor. Ela começou a olhar para cima, para o céu, ao invés de se concentrar apenas no chão.
Durante à noite, quando o passarinho não estava presente, Fuji fitava o firmamento puro e estrelado que iluminava o Monte Hoshi. E, pela primeira vez em muitos anos, sentiu-se abençoada e feliz.
No último dia da visita, o pardal-montês encontrou a amiga triste. Curioso, ele perguntou:
— O que aconteceu, Fuji? Por que está triste?
— Logo mais o nosso acordo acabará. E você voltará para o seu mundo e eu ficarei no meu. Sozinha, com os olhos fixos na terra.
— Minha bela amiga — falou docemente o pássaro —, não é a minha presença física que deve trazer felicidade a você. É a sua própria existência. Nesta vida, você teve a honra de nascer filha do Monte Hoshi, conectada às suas irmãs glicínias, dotada de profunda beleza e esplendor. O que será da próxima chance? Ninguém sabe. Veja, olhe um pouco para o céu. Quero que perceba uma coisa.
Suzume abriu suas pequenas asas e voou. Ao erguer a cabeça para o alto, Fuji percebeu com grande espanto que aquelas asinhas minúsculas se tornavam enormes, imensas, cobrindo todo o monte. A luz do sol se projetou em cima das pequenas asas e revelou o que elas realmente eram: gigantes.
Tocada em todo o seu ser, Fuji derramou lágrimas de felicidade. Um sorriso enorme cobriu a sua alma. Dessa forma, ela se despediu de Suzume, o amigo pardal-montês.
Antes do Monte Hoshi desaparecer atrás da cortina de fumaça do progresso, dizem que Suzume e Fuji trocaram um último olhar e prometeram espalhar a alegria de seus corações pelo mundo. Seus restos mortais deram frutos à terra, ao ar, à água e ao fogo, chegando até nós, seres que insistem em continuar ignorando a magia das pequenas coisas.
Mara Vanessa Torres é escritora, jornalista, revisora e crítica cultural. Tem profunda
admiração e crescente interesse pelo universo artístico e cultural nipônico. @abyssal_waters
Rafaela Torres é escritora, psicóloga, ilustradora e gamer. Apaixonada pela cultura
asiática. @rosenightshade
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