A flauta de Seiji
Por Rafaela Torres e Mara Vanessa Torres
Seiji vivia na província de Hida, às margens do rio. Tendo perdido mulher e filhos ainda na juventude, acostumou-se com sua solidão e modo de vida taciturno.
Todas as manhãs, Seiji levantava, trabalhava na horta, cortava lenha na floresta e, no final do dia, sentava-se diante da fogueira para tocar a sua flauta.
Foram anos de quietude e rotina até que, certa vez, a preciosa flauta de Seiji desapareceu. Ele a procurou por todos os lugares, vasculhando sua casa e até mesmo vários cantos da floresta. Foi às margens do rio e nada encontrou. Amargurado, Seiji começou a suspeitar que alguém teria levado a sua flauta.
“Quem sabe foi a mulher que mora do lado norte, que costuma vagar tarde da noite pela floresta escura e retorna para casa com cogumelos e ervas. Possivelmente, para fazer bruxarias e coisas do tipo. Ela deve ter visto o meu grande apego ao instrumento e decidiu enfeitiçá-lo”.
Não satisfeito, Seiji também envenenou o coração contra o velho morador da província, que costumava acampar próximo do rio. “Eu vi quando o velho encontrou a faca preferida do moleiro e a guardou na pequena bolsa que carrega na cintura. Só pode ter sido ele”.
As memórias de Seiji o fizeram se lembrar do filho mais novo de seu vizinho, que costumava vagar sem destino enquanto todos os outros trabalhavam. “Ele anda, veste-se e fala como um ladrão”, pensava o homem, no auge de sua inquietude.
Perdido em suspeitas, Seiji saiu para caminhar enquanto arquitetava modos de abordar os três suspeitos. Quando estava atravessando as margens do rio, notou um objeto descansando em cima de uma pedra. Ao olhar com atenção, percebeu que se tratava de sua flauta. Foi então que a imagem voltou à sua mente: ele a havia esquecido lá.
Arrependido, Seiji sentiu vergonha de ter deixado a maldade e o falso testemunho tomarem conta de sua alma e decidiu observar com atenção a mulher do lado norte, o velho morador que acampava nas proximidades do rio e o filho de seu vizinho.
Sem o peso da dúvida, Seiji pôde ver. Ele descobriu que a mulher vagava pela floresta tarde da noite, colocando a própria vida em risco, para fazer remédios para os moradores do vilarejo que não tinham como pagar por assistência médica.
O velho do rio costumava encontrar todo tipo de objeto, inclusive peças de ouro e prata, e guardava para devolver em mãos aos donos. Só descansava quando finalizava o seu intento. E o filho mais moço do vizinho era cego, e caminhava sem destino para sentir a luz do sol e o calor em sua pele.
Seiji aprendeu que nunca se pode julgar ou fazer qualquer juízo de valor quando o coração e a alma estão nublados e negativos. É preciso ver e observar, calando até mesmo os pensamentos para que não cometam perjúrios.
Rafaela Torres é escritora, psicóloga, ilustradora e gamer. Apaixonada pela cultura asiática. @rosenightshade
Mara Vanessa Torres é escritora, jornalista, revisora e crítica cultural. Tem profunda admiração e crescente interesse pelo universo artístico e cultural nipônico. @abyssal_waters
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