A Escolha de Nimura


Sakura Garden

Agraciado por um espírito da floresta, um garoto precisa escolher entre seu grande desejo e o bem-estar de sua vila.

Por Mara Vanessa Torres & Rafaela Torres

“Anata ga koko ni irukara ureshidesu.”
*(Eu estou feliz porque você está aqui.)


Era uma daquelas noites frias, congelantes, do tipo em que o vento uiva como um lobo rouco. Um garoto de nome Nimura Ren colhia gravetos e pedaços leves de madeira para aquecer a fogueira improvisada na porta de casa.

O vilarejo já estava quase todo recolhido, guardando confortavelmente cada família em sua casa, mas Nimura continuava do lado de fora. Desde que seu irmão mais velho abandonou o lar e sumiu no mundo, Nimura Ren assumiu todas as responsabilidades que lhe cabiam.

Nimura pescava, buscava pedaços de madeira para cozinhar e aquecer a casa, ajudava no plantio de arroz e cevadinha, além de auxiliar seus pais na confecção de itens de bambu. Tanto o senhor quanto a senhora Nimura estavam gravemente enfermos e não conseguiam fazer muitas atividades. Ainda que fosse muito jovem, Nimura Ren optou pela família.

Seu maior desejo era conseguir dinheiro suficiente para garantir tratamento e medicação aos pais. Quando ficasse um pouco mais velho, ele farejaria qualquer mínima oportunidade para tornar seu sonho realidade.

Todavia, naquela noite gélida, Nimura foi surpreendido por uma voz fina, quase um silvo:

— O que um garotinho está fazendo aqui em uma hora dessas?

Procurando por todos os lados, Nimura não conseguiu ver ninguém.

Assustado, ele deixou os gravetos rolarem no chão.

— Quem… Quem está aí? – falou aos atropelos, quase gaguejando.

— Vivo na floresta – respondeu a criatura – Sou um ser das árvores.

Créditos: Japanese Forest por G-hamm

A inteligência de Nimura e sua excelente memória o fizeram recordar de uma das conversas com o antigo ancião Taira, em que ele contou sobre a existência de kodamas nas florestas das redondezas.

— O que o senhor quer?

— Eu não quero nada – disse o ser, quase rindo – Quem quer é você. Por conta de seu esforço, vou te conceder um desejo. Mas, para isso, você precisa prometer que irá trazer uma flor de cerejeira todos os dias e depositá-la nas raízes daquela árvore.

Uma luz verde, extremamente brilhante, surgiu na escuridão, iluminando as raízes de uma grande árvore.

— Por que tenho que fazer isso?

— Ora! Quem quer alguma coisa precisa dar algo em troca.

— Tudo bem — respondeu Nimura.

— Volte aqui amanhã, neste mesmo horário, e faça seu pedido.

Nimura Ren aquiesceu e retornou para casa. Em seu peito, estrelas de felicidade explodiam. Finalmente, seus queridos pais ficariam curados daquela doença terrível que os impedia de respirar direito.

Porém, no outro dia, Nimura acordou com a notícia de que uma terrível infestação de cupins, surgida sabe-se lá de onde, acabaria com todas as casas do vilarejo. Todas as tentativas para eliminar a praga foram em vão. Em menos de dois dias, as famílias do lugar perderiam tudo.

Inconsolável, o garoto reparou na tristeza dos pais. Ainda que estivessem fragilizados e doentes, prestes a perderem o único bem que possuíam, eles estavam preocupados com os vizinhos e amigos, que também perderiam tudo.

Naquela noite, Nimura foi ao local indicado pela criatura mágica. Ele estava profundamente triste. Em suas mãos, uma bela flor de cerejeira perfumava o ambiente.

— E então, já decidiu qual é o seu grande desejo? — perguntou o ser da floresta.

— Sim. Quero salvar o vilarejo da infestação de cupins.

A entidade sobrenatural ficou um pouco confusa.

— Como assim? Esse desejo é completamente diferente daquele que reina em seu coração.

— Sim, é verdade. No entanto, se meus pais pudessem escolher, eles fariam a mesma escolha que estou fazendo.

— Prefere sacrificar o seu desejo pessoal em troca do bem-estar dos outros?

— Sim.

O garoto sequer titubeou.

— Muito bem – falou a criatura em tom solene – Volte para casa. Seu desejo será atendido.

E assim Nimura fez.

No outro dia, exatamente como mágica, a vila inteira se viu livre da infestação de cupins. O casal Nimura ficou imensamente feliz, transmitindo essa felicidade para o filho.

De forma surpreendente, eles também começaram a se sentir melhor.

E assim a vida foi seguindo.

Por mais dez anos, Nimura desfrutou da companhia dos pais, que só vieram a se despedir do mundo terreno quando ele já era um jovem prestes a sair do vilarejo e ir fazer a vida na cidade grande.

Durante todo aquele tempo, Nimura nunca mais ouviu a voz da entidade da floresta, mas jamais deixou de cumprir a promessa. Antes de ir embora, depositou uma carta aos pés da grande raiz, dizendo que partiria dali.

Créditos: Sakura Garden por Tomas Honz

Na noite anterior ao momento de sua partida, Nimura precisou esfregar os olhos incontáveis vezes para confirmar se não estava sonhando: a árvore da floresta havia se tornado uma belíssima cerejeira, tão florida e intensa como um raio de amor.

Com lágrimas nos olhos, Nimura Ren se ajoelhou e reverenciou aquela entidade sagrada. Por alguns segundos, ele quase pôde ouvir:

—Miokuri no / Ushiro ya sabishi / aki no kaze.*

*(“Na despedida, as costas/ Solitário vento de outono.” Haicai de Matsuo Bashô em tradução de
Gustavo Frade.)


Mara Vanessa Torres é escritora, jornalista, revisora e pesquisadora. Escreve sobre tecnologia, arte, cultura, ciência e cultura asiática. Tem uma mente que acredita em enigmas e no poder da transcendência. Twitter: @maravanessatmf

Rafaela Torres é escritora, psicóloga, ilustradora e gamer. Apaixonada pela cultura asiática e por trilhas sonoras. Instagram: @rosenightshade

Créditos da imagem do topo: Sakura Garden por Tomas Honz

2 Comentários

  1. Nicolás Irurzun

    Mais um conto de extrema sensibilidade das irmãs Torres! 🙂

  2. Maria Fátima

    Belíssimo! eu adoro esses contos de vocês. Parabéns queridas!

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