A Água-Viva e o Peixe Abissal
Um coração destruído é capaz de se recuperar? Quem tem esse poder? Leia a história de Kanashimi e Kukai.
Por Mara Vanessa Torres & Rafaela Torres
Na bela ilha de Honshu, vivia uma água-viva chamada Kanashimi. Apesar de toda a beleza que a cercava, Kanashimi não se alegrava com coisa alguma. Depois de ser enganada e iludida por quem considerava seu grande amor, a água-viva não conseguia mais confiar em ninguém e carregava dentro de seu coração uma enorme tristeza.
— Kanashimi, venha passear conosco — chamavam as outras águas-vivas, moluscos, peixes e animais marinhos da ilha. — O dia está tão bonito!
— Não estou com vontade. Eu quero ficar sozinha — resmungava, antes de se distanciar.
— Que belíssima lua cheia! Você não gostaria de admirá-la ao nosso lado? — insistiam os amigos.
— Agradeço a oferta, mas prefiro ficar sozinha — repetia a água-viva.
Nada e nem ninguém era capaz de tocar o espírito ferido de Kanashimi. Apesar de seu porte, beleza e inteligência, ela culpava o mundo ao redor por sua infelicidade.
— Minha velha amiga, por que guarda em seu coração essa experiência negativa? Não prefere trocá-la pelos momentos agradáveis? Por que não permite que a imagem de quem lhe fez mal vá embora? Deixe ir. Abra espaço para novas experiências — repetia o polvo Shiawase, amigo de longa data da água-viva.
Apertando os tentáculos, Kanashimi respondia:
— Nunca mais vão destruir o meu coração novamente.
— Quem está destruindo seus sentimentos a não ser você mesma? — argumentava Shiawase, mas era ignorado pela água-viva.
As águas do mar foram levando e trazendo conchas marinhas e as gaivotas continuavam rodopiando no céu. Então, certo dia, ao sair para procurar comida, Kanashimi encontrou um peixe abissal. Em toda a sua vida, ela jamais havia visto um ser tão feio e horripilante. Além do mais, ele pertencia às profundezas. O que estaria fazendo ali?
— Ei, você! — gritou rudemente. — O que está fazendo aqui?
— Olá, bom dia! — cumprimentou docemente o peixe. — Que dia maravilhoso para conhecer um lugar novo. Você está bem?
— Chega de conversinha. Volte para onde veio.
Assustado com tanta agressividade, o peixe falou:
— Meu nome é Kukai. Sou forasteiro. Gostaria de conhecer um pouco mais este lado da ilha de Honshu. Você teria tempo disponível para me mostrar tudo o que mais gosta?
— O que eu mais gosto? EU NÃO GOSTO DE NADA! — rebateu a água-viva. — Vá embora! Tenho que procurar comida.
— Ah, que beleza! Vamos juntos.
Fosse qual fosse a situação, o peixe abissal Kukai nunca perdia o seu senso de humor. Durante todo aquele dia, Kukai acompanhou Kanashimi apenas pela força de seu desejo. A água-viva continuava raivosa e intragável.
Depois que o dia encerrou, Kanashimi se sentiu mais leve. Ela não sabia explicar o motivo, mas algo que emanava daquele peixe abissal sorridente e brincalhão tinha mudado o seu dia.
Orgulhosa, a água-viva não agradeceu e nem se despediu. No entanto, ela não conseguiu tirar Kukai da cabeça.
Na manhã seguinte, incrivelmente, o peixe abissal estava no mesmo lugar. Ele parecia esperar por Kanashimi. E essa mesma cena se repetiu por um mês, até que Kukai deixou de aparecer.
Sentindo sua falta, Kanashimi circulou silenciosamente por toda a ilha de Honshu. Enquanto procurava pelo peixe abissal, ela foi capaz de sentir os raios solares, o vai e vem das ondas, a alegria dos animais marinhos, o toque suave da água em sua pele fina.
Foi então que ela se deparou com Same, o tubarão por quem foi profundamente apaixonada e que despedaçou o seu coração.
Ao fitá-lo com atenção, Kanashimi notou, surpresa, que não sentia mais nada. Sua mente só conseguia pensar nos momentos agradáveis que passara ao lado de Kukai, o feioso peixe do fundo do mar. Então, a água-viva virou as costas e foi embora.
Kukai desapareceu. Nunca mais foi visto em águas tão rasas. No entanto, Kanashimi passou a apreciar a bela ilha de Honshu em todo o seu esplendor; o ambiente cheio de vida que a cercava; a companhia dos amigos e a doce lembrança de Kukai. Ela percebeu que o seu coração estava aberto novamente.
Kanashimi reaprendeu a sorrir. Sua mente palpitava em batidas serenas. Sentir o toque das águas era maravilhoso! Sempre foi e sempre será.
Mara Vanessa Torres é escritora, jornalista, revisora e crítica cultural. Tem profunda admiração e crescente interesse pelo universo artístico e cultural nipônico. @abyssal_waters
Rafaela Torres é escritora, psicóloga, ilustradora e gamer. Apaixonada pela cultura asiática. @rosenightshade