Um pingo de tinta
Será possível seguir em frente depois de uma grande perda? Um pingo de tinta e uma formiguinha atrevida parecem acreditar que sim.
Por Mara Vanessa Torres & Rafaela Torres
“Com pequenas batidas uma grande árvore é derrubada.”
Provérbio japonês
Um pingo minúsculo de tinta caiu em cima da folha em branco, transformando-se em um oceano em miniatura tomado por ondas invisíveis e marés baixas. Sota soprou cuidadosamente o papel, deslizando o dedo mindinho no meio da tinta. Em seguida, contemplou o resultado.
— Uma árvore centenária ou uma montanha coberta de neve — falou para si mesmo. O chá verde de arroz tostado continuava liberando vapores da tigela, sinalizando que ainda estava quente. Ainda.
Sota ignorou a bebida, ergueu-se e caminhou até à janela. O sol brilhava alto em um céu sem nuvens e o silêncio era absoluto. Ele estava começando a se acostumar com a tranquilidade daquele vilarejo. Seu coração ainda sangrava todos os dias — e como não sangraria? —, mas ele tinha prometido à avó que iria viver.
— Prometa, meu filho! Prometa que vai ter uma vida longa, saudável e feliz.
Sota apenas conseguiu prometer que sobreviveria. No que diz respeito à saúde, longevidade e felicidade… Bem, ele não poderia assumir um compromisso tão grande. “Posso continuar respirando… Basta apenas esquecer que respiro”, pensava.
Dizer adeus para Yamato foi como dizer adeus para si mesmo. A menor lembrança daquela despedida absurdamente dolorosa, quando o caixão da mulher amada entrou dentro do crematório, causava dores inimagináveis pelo corpo e espírito de Sota, deixando-o melancólico e profundamente desencantado. No fundo, ele se considerava um morto. Um morto-vivo.
Naquele dia ensolarado, ao admirar o pingo de tinta que caiu em sua folha de papel em branco, fazendo o que, tempos atrás, ele classificaria como “pequena bagunça”, Sota percebeu algo interessante.
Créditos: Ant At Sunset de Joni Niemela
Uma formiga havia se agarrado ao papel, descendo e subindo em curvas infinitas. Suas patas minúsculas tocaram na tinta e saíram “tipografando” o vazio. Assim que ela terminou de circular pela folha, saiu descaradamente de cena e, seguindo em frente, não olhou para trás.
Foi então que Sota leu a mensagem que se formou depois do passeio da formiga atrevida:
“O rio ainda corre do lado de fora.”
Em lágrimas, Sota abraçou o papel. Poucos metros de distância dali, era possível ouvir o barulho de um rio. Suas águas quentes seguiam o fluxo de modo incessante.
Sempre em frente.
“Seja feliz e viva bem”, era o que Yamato sempre lhe pedia.
Assim como as águas do rio, Sota manteria suas lembranças a salvo, dentro de seu coração, enquanto continuava sua rota pelas estradas da vida.
Como um rio.
Mara Vanessa Torres é escritora, jornalista, revisora e pesquisadora. Escreve sobre tecnologia, arte, cultura, ciência e cultura asiática. Tem uma mente que acredita em enigmas e no poder da transcendência. Twitter: @maravanessatmf
Rafaela Torres é escritora, psicóloga, ilustradora e gamer. Apaixonada pela cultura asiática e por trilhas sonoras. Instagram: @rosenightshade
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