Japão: As lições esquecidas das epidemias passadas e a nova ameaça pela Covid-19


Lições esquecidas de doenças passadas levam a novas ameaças

Ao longo da história, os japoneses sofreram inúmeras vezes com epidemias. Agora uma nova ameaça tem preocupado o país. Para muitos, o estado de emergência foi decretado tardiamente. Será que as lições aprendidas com os surtos anteriores foram esquecidas?

Neste artigo, conheceremos algumas das principais epidemias que ocorreram no país e porque não devemos baixar a guarda para esse vírus patogênico que tem atingido o planeta.

A construção do Grande Buda para combater as epidemias

No famoso templo Tōdaiji, lar do Grande Buda de Nara, um novo ritual tem sido realizado diariamente desde o início de abril. Os sacerdotes do templo oferecem orações pelo fim da nova pandemia de coronavírus todos os dias ao meio-dia no Salão do Grande Buda.

Cerca de 1.300 anos atrás, na época em que o Imperador Shōmu ordenou a construção do Grande Buda, o Japão foi varrido por uma epidemia que se seguiu a um grande terremoto e fome. A doença era varíola, um dos vírus mais horríveis que a humanidade já enfrentou.

Esta doença tem como sintomas febre muito alta e uma alta taxa de mortalidade. As pessoas que sobrevivem à doença podem sofrer sequelas permanentes, como cicatrizes ou cegueira.

A doença, que se diz ter sido transmitida de um enviado para o reino de Silla na península coreana, se espalhou por toda a capital, Heijō-kyō (agora parte de Nara), causando grande pânico na corte imperial e matando todos os quatro irmãos da poderoso clã Fujiwara.

Embora tenha ocorrido no Japão em 735-37, acredita-se que a epidemia tenha matado 1 milhão a 1,5 milhão de pessoas, aproximadamente 25% a 35% da população da época.

Se recuperando dessa onda de desastres, o Imperador Shōmu ordenou a construção do Grande Buda no ano de 743, com a esperança de garantir o bem-estar do estado e proteger a população de Nara de doenças e outras calamidades.

Lições esquecidas de doenças passadas levam a novas ameaças

Mudanças de nomes de Eras por causa de epidemias

Em 2019, a nova era Reiwa começou com a ascensão do imperador Naruhito ao trono imperial – a primeira vez em 2 séculos para que isso ocorresse como resultado de uma abdicação. Normalmente tal evento ocorre somente após a morte do imperador vigente.

A cada novo reinado, ocorre mudança no nome da Era. Assim como nos reinados dos seus antecessores: Era Heisei (Akihito) e Showa (Hirohito). No entanto, no passado, ocorreram muitas mudanças de nomes de Era relacionadas ao surto de doenças. No total, houve 248 nomes de eras, começando com Taika, o nome da primeira era, no ano de 645.

Em mais de 100 casos, os nomes da nova era foram criados após um desastre natural, guerra, epidemia ou alguma outra grande calamidade, como uma maneira de romper com esse passado trágico e, esperançosamente, trazer melhores tempos. Por outro lado, os nomes de Era que chegaram com a ascensão de um novo imperador corresponde a apenas 74 casos.

Cerca de 30 dessas mudanças de nome baseadas em calamidades, aproximadamente um terço, foram causadas por epidemias mortais. A varíola foi a doença que mais afetou, seguida pelo sarampo, cujos sintomas são febre alta e erupções cutâneas pelo corpo inteiro.

Na época, quando tantas pessoas morreram de doenças cujas causas eram desconhecidas e para as quais não havia vacina e tratamento disponível, os japoneses confiavam que só poderiam combate-las através de fervorosas orações e mudanças dos nomes da Era.

Setsubun e Fogos de Artifício no Rio Sumida

Setsubun

O costume japonês do Setsubun, no qual as pessoas jogam grãos de soja para expulsar os oni (ogros) da casa, está ligado a doenças infecciosas. Teve início do século XV, durante o período Muromachi (1336-1573) e é realizado no dia 3 de fevereiro de cada ano.

Os ogros representavam as ameaças terríveis e invisíveis tais como epidemias, desastres naturais e coisas do tipo. Algumas explicações dizem que as faces vermelhas dos ogros significam uma pessoa com febre alta causada por uma doença infecciosa como a varíola.

Como parte das atividades de Setsubun, as cabeças de sardinha e as folhas de azevinho eram tradicionalmente colocadas na entrada das casas para afastar os ogros, que dizem detestar essas coisas. As famílias japonesas repetem esses costumes todos os anos na esperança de afastar os espíritos que causam o mal e assim permanecerem saudáveis.

O desejo de todos era dispersar as epidemias. Esse desejo também está na origem do Festival de Fogos de Artifício do Rio Sumida, que ilumina o céu noturno em Tóquio todos os verões.

Em 1733, o oitavo shōgun do regime de Tokugawa, Yoshimune (1684-1751), encomendou uma exibição de fogos de artifício no primeiro dia do festival anual de verão no rio Sumida.

A intenção por trás desse evento seria para homenagear todos aqueles que haviam morrido de fome e pragas que devastaram a cidade de Edo e orar pelo fim dessas calamidades. PS: Em 2020, a queima de fogos do rio Sumida foi cancelada devido ao surto de COVID-19.

Fogos de artifícios no rio Sumida

Surtos epidêmicos ocorrem quando as pessoas baixam a guarda

Os festivais e tradições realizadas na antiguidade para afastar doenças foram transmitidas nos templos e santuários em todo o país. Mas, embora a ameaça de epidemias tenha sido um problema tão presente no Japão ao longo dos séculos, o recente surto de COVID-19 nos mostra que o país parece ter baixado a guarda e parece não reconhecer o perigo iminente.

Uma epidemia e um grande terremoto são bastante parecidos“, explica Ishi Hiroyoki, jornalista ambiental de 79 anos e autor de Kansensho no sekaishi (Uma história mundial de doenças infecciosas). “Mesmo que as pessoas saibam que esses desastres ocorrerão periodicamente, elas não tem a mínima noção de quando ou onde poderá ocorrer”.

Como escreveu famosa a física e ensaísta Terada Torahiko, “Um desastre natural ocorre no momento em que você o esquece“. “Enquanto continuarmos vivendo neste planeta, não haverá como escapar de terremotos e epidemias”, conclui Torahiko.

Dengue ataca pela primeira vez em 70 anos

Um recente surto de dengue ocorreu no verão de 2014. Um homem picado por um mosquito no Parque Yoyogi, em Tóquio, sofreu uma febre alta e dores por todo o corpo.

A doença, mais comum nos climas quentes, se espalhou no Japão durante a Segunda Guerra Mundial, quando os mosquitos que a carregavam foram trazidos ao país a partir dos campos de batalha do sul. Nos próximos 70 anos, porém, nenhum caso doméstico ocorreu.

Antes do surto de dengue chegar ao fim em 2014, o número de casos de dengue em Tóquio alcançou 160 casos em um período de apenas dois meses. A impossibilidade de impedir que doenças infecciosas entrem no Japão através de outros países foi bem ilustrada por esse surto: Como podemos ver, não há fronteiras que possam impedir a entrada de insetos.

Antes do atual surto de COVID-19, o mundo foi atingido por surtos de duas outras doenças por coronavírus – SARS (síndrome respiratória aguda grave) em 2002–3 e MERS (síndrome respiratória do Oriente Médio) em 2012 – mas nenhuma delas teve muito impacto no Japão.

Dada essa boa sorte do passado, prevaleceu no Japão a atitude descuidada de que o surto explosivo de COVID-19 oriundo na China, não seria um problema interno.

O Japão não aprendeu muito com as epidemias passadas, então há pouca experiência para aplicar à crise atual“, destaca Ishi. Essa falta de experiência foi manifestada na resposta do Japão ao surto de COVID-19 a bordo do navio de cruzeiro Diamond Princess.

Apesar dos 110 casos de infecções nos navios de cruzeiro na última década, o Japão mostrou pouco senso de cautela sobre a possibilidade de a doença se espalhar a bordo.

Instituto Nacional de Doenças Infecciosas (NIID)

O governo japonês, de olho nas Olimpíadas e Paraolimpíadas de Tóquio que seriam realizadas em 2020, tinha como objetivo transformar o Japão em um dos principais destinos turísticos, estabelecendo a meta de 40 milhões de visitantes estrangeiros anuais. Essa tendência naturalmente aumentou o risco de doenças infecciosas serem trazidas para o país.

Apesar desse risco iminente, o orçamento e a equipe do Instituto Nacional de Doenças Infecciosas (NIID) foram constantemente reduzidos nos últimos 10 anos. O NIID tem cerca de 300 pessoas trabalhando no local e um orçamento anual de cerca de ¥ 8 bilhões.

Já os Centros de controle e prevenção de doenças nos Estados Unidos, tem aproximadamente 11.000 funcionários e um orçamento equivalente a mais de 800 bilhões de ienes para apoiar suas atividades, que incluem a coleta de informações e a realização de quarentenas.

O NIID não tem a capacidade de testar amplamente o COVID-19 em um curto período de tempo, o que a situação atual exige. Inúmeros especialistas no Japão estão pedindo a rápida criação de uma nova organização com a contratação de uma equipe maior e com os recursos necessários para coordenar as respostas às crises epidêmicas do Japão.

População idosa: um alvo fácil para o vírus

tokyo

A concentração e a superlotação de populações devido à urbanização alimentaram o rápido aumento de surtos de doenças infecciosas. Essa concentração de pessoas pode ser vista nas megacidades do Japão, como Tóquio e Osaka. Além disso, o país está sobrecarregado com uma das populações mais idosas do mundo. O surto de COVID-19 deixou claro mais uma vez que os idosos são particularmente vulneráveis ​​a vírus patogênicos como esse.

Os seres humanos criaram ambientes propícios à propagação de doenças no passado também“, alerta Ishi. “Mas a combinação incomparável de populações altamente concentradas e uma sociedade envelhecida no Japão criou um viveiro para surtos de doenças“.

Ishi Hiroyoki estremece ao imaginar as consequências se um grande desastre natural do tipo previsto para o futuro próximo do Japão coincidir com uma epidemia mortal. Existem muitos desafios que os japoneses precisarão enfrentar para proteger sua sociedade.

Fonte: www.nippon.com

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