Hāfu: Os cidadãos japoneses com raízes mistas
O fato de duas mestiças já terem representado o Japão no Miss Universo e outras se destacarem nos esportes como a tenista Naomi Osaka tem desencadeado intensa discussão nas mídias e redes sociais japonesas sobre hāfu – uma palavra derivada de “metade”, que significa pessoas com raízes mistas – literalmente, aqueles que são “meio japoneses”.
Entre as questões em debate estão o que significa ser hāfu e o que significa ser japonês. Como podemos imaginar, o número de cidadãos japoneses com raízes mistas vem crescendo nos últimos anos e este artigo aborda o contexto social que as cerca e a variedade de nomes existentes para descrever as pessoas que pertencem a este grupo específico.
Hāfu é um termo ambíguo. Surgiu na mídia por volta da década de 1970 e muitos a utilizaram de forma auto-descritiva como forma de expressar identidade. Às vezes, tem uma nuance positiva, mas também pode ser tomada como negativa ou até discriminatória.
Em outubro de 2018, Tamaki Denny foi eleito governador da província de Okinawa. Em um artigo de 2016, ele compartilhou seus pensamentos ao se ouvir descrito usando a palavra.
“O problema fundamental de chamar alguém de hāfu é que ele carrega uma sensação de condescendência e discriminação das pessoas que usam palavras para categorizar em relação àquelas que estão sendo categorizadas”. Mas o que significa a palavra hāfu normalmente?
Um artigo de 2016 no Asahi Shimbun observou: “Um em cada 50 bebês nascidos no Japão é um hāfu – que tem um pai ou mãe de outra nacionalidade – totalizando em média 20.000 crianças por ano”. Enquanto isso, a socióloga Mary Angeline Da-anoy descreveu a palavra como geralmente usada para crianças nascidas em casamentos internacionais.
Estatísticas do Ministério da Saúde, Trabalho e Previdência mostram que houve uma média de mais de 30.000 casamentos internacionais por ano no Japão na última década. Com esses dados, a mídia tem uma ideia do número de crianças hāfu nascidas a cada ano.
No entanto, esses dados não transmitem com precisão o número total de hafu que vivem na sociedade japonesa. Por exemplo, há pessoas que nasceram no exterior onde um dos pais é cidadão japonês enquanto o outro é de outra etnia e depois se mudam para o Japão.
Esse também é o caso de muitos que vieram para o Japão na década de 1990, depois que os requisitos de visto foram relaxados para os nikkeis (descendentes de emigrantes japoneses). Esses casos muitas vezes não entram nas estatísticas do ministério da saúde.
Também é impossível descrever facilmente a realidade de ser um hāfu . Assim como a nacionalidade, a experiência e a identidade individuais variam de acordo com fatores como onde nasce e cresce, aparência, onde os pais moraram, cultura, educação em escolas locais ou internacionais, gênero e nome – que podem ser escritos em katakana, kanji ou hiragana.
A ambiguidade da palavra frequentemente levanta dúvidas sobre se os hāfu são considerados pessoas japonesas ou estrangeiras. Devido ao fato de ser uma nomenclatura amplamente conhecida no Japão, muitas pessoas de raízes mistas decidem usá-la quando são questionadas sobre sua identidade como uma abreviação facilmente aceita no país.
Termos múltiplos
Embora agora seja o termo mais popular, hāfu está longe de ser a única maneira de expressar raízes mistas em japonês. Na era imediata do pós-guerra, konketsuji (criança de sangue misto) foi usada especialmente para os filhos de mulheres japonesas e soldados dos EUA.
Mais tarde, o kokusaiji (criança internacional) tornou-se popular entre organizações de apoio, ativistas sociais e pesquisadores em substituição ao konketsuji, que era visto como discriminatório. Era particularmente comum entre grupos de apoio a crianças apátridas em Okinawa e aqueles que ajudavam crianças com raízes japonesas e filipinas.
Daburu (duplo), enfatizando a herança positiva e dupla da língua e cultura, surgiu como uma alternativa ao hāfu, que era considerado negativo. Ele se espalhou na década de 1990 através de movimentos sociais e cinema. Enquanto alguns consideram essa nomenclatura como apropriada, a mesma também recebeu críticas por não corresponder à realidade.
Os filhos de um Hafu e uma mãe japonesa pode ser conhecido como Kuota (quarto), embora a palavra também seja aplicado às pessoas com raízes em mais de dois países.
A popularidade do termo inglês “mixed race” levou o Japão a importá-lo como mikkusu (ミックス), que pode ser usado para pessoas com raízes de várias nacionalidades.
Alguns acham esse modo de pensar positivo, enquanto outros acham que os deixa fora do lugar. A palavra Jafurikan é uma fusão de “japonês” e “africano”, enquanto a palavra em inglês “Blasian” (ascendência mista africana e asiática) entrou no japonês como bureijian.
Amerajian (Amerasian) foi particularmente utilizado pelos promotores de escolas alternativas e outros grupos de apoio em Okinawa na década de 1990. Descreveu originalmente os filhos de mulheres asiáticas e soldados dos EUA no imediato período pós-guerra.
O termo havaiano hapa também é às vezes usado em japonês para pessoas com herança mista, especialmente na internet e redes sociais. Esses termos variam em seus significados sociais, políticos e históricos e também são usados para diferentes propósitos.
As palavras usadas no ativismo social desempenharam um papel importante ao longo dos anos, no entanto, a complexidade dos termos é um fator que dificulta a compreensão da população em geral em relação às pessoas com raízes mistas e as dificuldades que enfrentam.
O contexto social do Japão no pós-guerra
As mudanças na terminologia detalhada acima estão intimamente ligadas à história do Japão no pós-guerra. Após o fim da Ocupação Aliada, no início da década de 1950, a mídia japonesa estava cheia de histórias sobre a questão social dos konketsuji (混血児).
Se antes da Segunda Guerra, o termo konketsu (sangue misto) se referia principalmente às crianças com pais coreanos, taiwaneses ou Ainu, no período pós-guerra era quase sempre usado para filhos de mães japonesas com soldados americanos durante a ocupação.
A questão estava fortemente associada à imagem de um país derrotado que ainda não havia se recuperado economicamente. No entanto, a partir do final da década de 1950, quando o Japão entrou em um período de alto crescimento, o interesse da mídia diminuiu.
A cultura ocidental foi lançada no Japão entre as décadas de 1950 e 1960 através de filmes, músicas e tendências de moda. A influência europeia e americana contribuiu para uma mudança radical de atitudes em relação aos países ocidentais. Outrora inimigos, os norte-americanos tornaram-se exemplos de um ideal almejado e uma imagem de conforto material.
A recuperação econômica e a influência ocidental foram a base para o surgimento da palavra hāfu, e representantes de raízes mistas no mundo dos esportes e do entretenimento ganharam destaque. O termo passou a ter uma imagem excessivamente romantizada.
Ao mesmo tempo, coincidiu com o boom Nihonjinron (日本人論), que enfatizava a unidade étnica e cultural do povo japonês, não deixando lugar para os hāfu.
As tendências do casamento internacional no Japão foram mudando gradualmente. Se antes era mais comum o casamento de mulheres japonesas com homens estrangeiros, a partir de 1975 tornou-se mais comum homens japoneses casando-se com mulheres estrangeiras, especialmente mulheres de outros países asiáticos tais como Filipinas e Tailândia.
Na década de 1990, as palavras kokusaiji e daburu foram defendidas pelos movimentos sociais como alternativas para os termos comumente usados como Hafu e konketsu, ao mesmo tempo que várias organizações lutava pelos direitos das pessoas de raízes mistas.
A crescente presença do Japão na comunidade internacional aumentou o número de cidadãos estudando no exterior, tirando férias ou contribuindo para o trabalho de desenvolvimento ou expansão corporativa no exterior. Isso levou a um aumento adicional de casamentos internacionais e a mais crianças com raízes mistas crescendo no Japão.
A crise econômica pós-bolha do país e o aprofundamento da escassez de mão-de-obra provocaram uma emenda da Lei de Controle de Imigração e Reconhecimento de Refugiados em 1990, criando um novo visto para estrangeiros de ascendência japonesa.
Muitos imigrantes da América do Sul entraram no país. Na mesma época, foram feitos esforços locais para apoiar crianças com pais estrangeiros ou com vínculos com outros países.
Estereótipos erodidos
Apesar dos esforços do governo em alavancar as comunidades multiculturais desde o final dos anos 2000, os hāfu em sua maioria são obrigados a lidar com o preconceito em seu cotidiano, além do assédio moral e a discriminação no emprego e no casamento.
Por outro lado, à medida que as comunidades hāfu crescem, há mais pessoas para falar suas experiências e questões de identidade ao público em geral. Muitos buscam ativismo por meio das mídias sociais, aumentando constantemente a consciência do preconceito que enfrentam.
Existe uma tendência no Japão a imaginar o hafu como celebridades ou atletas por muitos deles se destacarem na mídia, mas por outro lado, essas pessoas tem maiores oportunidades de relatar suas experiências, e com isso esses estereótipos estão sendo quebrados.
As perguntas permanecem
Depois de revisar todas as diferentes palavras que existem e seus antecedentes, as perguntas ainda permanecem. Afinal, qual é a melhor palavra para se usar nesses casos? O que significa ser um hāfu de verdade? Quais são as experiências deles?
Algumas pessoas podem achar desnecessário ou não entender a razão de existir tantos termos. Na verdade, as pessoas têm diferentes razões para usá-los, tais como “Quero expressar a conexão entre os dois aspectos da minha identidade”, “Eu quero dizer às pessoas o que eu sou de uma maneira fácil de entender “ou” quero transmitir minha complexidade“.
Mais importante do que saber os termos existentes é ouvir como elas se descrevem como indivíduos. Em vez de colocar as pessoas presas em suas bolhas, sua realidade complexa deve ser encarada tal como é. Essa é uma abordagem crítica na diversificação atual do Japão.
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